A partir de agora, cada vez que eu pretender ir a Lisboa, terei que planear de véspera essa viagem para ter a certeza que o automóvel disponível cá em casa é o de matrícula mais recente. Com três carros em casa, um deles de 1998, e outro de 1994, com que fiquei após o falecimento do meu pai no passado mês de Agosto, sobra-me apenas o terceiro, de 2006, para poder responder às novas determinação legais impostas pela autarquia às ordens de António Costa sempre que quiser deslocar-me ao centro da cidade onde nasci. Tais determinações surgiram, dizem eles, por força da necessidade de salvaguardar a qualidade do ar no centro de Lisboa. Mas será que já se deram conta das consequências destas decisões?
Sem uma rede de transportes realmente adequada - deixo o desafio aos autarcas de Lisboa para, de transportes, cruzarem a cidade, saindo dos Olivais pela manhã para se dirigirem a Algés, ou avançando a partir da populosa freguesia de Marvila até ao Alto dos Moinhos, em Benfica, e descobrirem em qualquer dos casos quanto tempo demoram a fazer estes percursos -, a Câmara Municipal de Lisboa torna cada vez mais difícil que os seus próprios munícipes possam realizar o seu dia-a-dia na cidade onde muitos deles nasceram, sempre viveram e trabalharam.
No primeiro dia em que as novas medidas foram adoptadas, uma reportagem de um canal de televisão dava voz a um trabalhador que distribuía produtos alimentares numa carrinha frigorífica por restaurantes da capital. A carrinha, aparentemente bem estimada, só porque tinha matrícula ainda do século passado passa a estar proibida de circular na zona central de Lisboa e o seu proprietário perguntava à repórter o que poderia fazer: "Será que vou ter que mudar de carro de trabalho? Eu não tenho dinheiro para isso! Vou ter que deixar de trabalhar?"
Com um parque automóvel que não poderá ser apontado propriamente como novo mas antes pelo contrário, isto apesar de termos vivido um ano de 2014 em que se assistiu a uma recuperação nas vendas de veículos novos, estima-se que mais de um milhão de veículos sejam impedidos de aceder a partir de agora ao centro da cidade de Lisboa. O coração da capital é hoje uma zona de onde já saíram os escritórios para os "business centers" da periferia, de onde já saiu o comércio para as enormes superfícies comerciais da Amadora, Loures, Oeiras, Cascais e Sintra, e onde apenas vivem meia dúzia de idosos, muitos deles abandonados à sua sorte em prédios ainda mais velhos do que seus habitantes, uns e outros à espera dos últimos dias.
Quem legislou, certamente esqueceu-se que a grande maioria daqueles que diariamente circulam nas ruas e avenidas da capital não são propriamente utilizadores de veículos comprados em leasing a gestoras de frotas, sendo antes os que compram um automóvel com as poupanças de anos e anos de trabalho. Não são aqueles que passam o dia em escritórios com ar condicionado e vista sobre o Tejo mas sim os que realmente "conhecem" o ar da cidade que respiram.
A qualidade do ar em Lisboa, assim como nas restantes cidades do país, deve ser uma preocupação de todos, e deverá merecer atenções e medidas... mas convenhamos que se está a começar a construir a casa pelo telhado e, em pleno centro de Lisboa, como fora dele, há situações bem mais complicadas e potencialmente perigosas.
Vejam-se em plena baixa pombalina, ou fora dela, os prédios devolutos com risco de incêndio ou em perigo de derrocada. Vejam-se as zonas que transformam em piscinas às primeiras chuvas apanhando os condutores menos atentos, estejam ao volante de carros deste ou do outro século. Vejam-se as ruas esburacadas que rapidamente destroem a suspensão de qualquer automóvel mesmo dos mais recentes. Vejam-se os passeios de calçada portuguesa, muitos deles em mau estado, transformados em verdadeiras armadilhas para os transeuntes, nomeadamente os mais idosos.
Quando muitos dos veículos da nossa rede de transportes públicos são os primeiros a não terem manutenção e a largar enormes nuvens de poluição no arranque a partir de cada paragem ou cada semáforo, quando as próprias autoridades circulam em veículos dos anos 90 (ou mais antigos) multando condutores com carros mais recentes, quando tudo isto anda de cabeça para baixo, numa cidade e num país em que já perdemos as forças para protestar e tudo se aceita de braços caídos, permitindo que alguns políticos da nossa praça tudo façam porque sabem que o protesto será efémero e rapidamente passageiro, passamos a olhar para os nossos umbigos, permitindo que tudo e todos ponham e disponham da nossa vida e do nosso dia a dia a seu belo prazer.
Num país sem memória, onde rapidamente se esquecem as críticas de ontem trocadas pelas de hoje, as quais amanhã nada significarão perante uma sociedade que aprendeu a viver resignada, ainda vamos assistir ao dia em que os mais velhos não poderão frequentar determinados espaços porque afectam a imagem, ou porque sofrem de incontinência e podem soltar gases incómodos. É disso que se trata com os automóveis... certo!?
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